quarta-feira, 27 de junho de 2007

CINZAS DO NORTE

Um retrato pessimista de uma geração não apenas derrotada, mas também desiludida, em uma época em que a juventude podia ser resumida em dois pólos, os engajados e os conformados. Através de um núcleo familiar, Milton Hatoum consegue caracterizar a sociedade dessa época, em que sobra apenas memórias e cinzas.
Cinzas do norte é um romance narrado em primeira pessoa com belas combinações de descrições, diálogos, narrativas subjetivas e diferença de vozes, limpa de idéias preconcebidas e de fórmulas gastas. Obra repleta de conflitos: entre a tradição familiar e a modernidade industrial que oprime e muda Manaus, expulsa os moradores da beira do rio; entre a linguagem culta, elegante, e a coloquial, herdada da oralidade e presente na segunda pessoa utilizada nos diálogos.
A história se passa em Manaus, entre os primeiros anos do Golpe Militar de 1964 até a abertura democrática dos anos 1980. Nesse período, acompanham-se principalmente as trajetórias paralelas de Lavo (o narrador) e Mundo (o protagonista central), da infância à idade adulta. O primeiro, humilde órfão criado pela tia Ramira, costureira, e o tio Ranulfo, um pândego que só pensa em mulheres e livros. Lavo torna-se ao fim advogado de detentos esquecidos nas prisões, ficando às margens de uma sociedade tradicionalista, pois sua família era pouco convencional; o segundo, filho de uma rica e tradicional família dessa região exportadora de juta, torna-se artista plástico, rebelando-se contra a rigidez disciplinar e os valores do pai Jano, mas sempre com o apoio de sua mãe Alicia que é a ilha de refúgio e compreensão para o filho. Alicia casou-se por conveniência mas sempre foi apaixonada o Ran (Ranulfo), eles nunca deixaram de se encontrar. Ela, pelo descontentamento com o casamento, viciou-se me jogos e bebidas alcoólicas.
A amizade dos dois amigos, Lavo e Mundo, não é óbvia, sentem mais que afeto um pelo outro, sentem necessidade, uma inveja mútua. Mundo sente inveja da suposta liberdade do amigo, que não tem um pai ou alguém para o impedir de fazer o que realmente quer. Lavo inveja a ousadia, a coragem, o talento e o inconformismo de Mundo e as possibilidades que sua posição social lhe trouxeram. Lavo não tem sonhos. Falta-lhe a obstinação. Torna-se advogado por falta de vontade de decidir qualquer outra coisa
Reencontra-se nas trajetórias de Lavo e Mundo a história de vidas que ficaram pelo caminho, os amores irrealizados pelo medo, as esperanças que se perderam no tempo. Cinzas do norte mostra a falta absoluta de ilusão, mostra também pessoas frustradas e fracassadas.
Lavo é o narrador observador, ainda que todos os fatos narrados estejam diretamente ligados a sua vida, conta a história de modo distanciado. Sua narração é entrecortada por trechos de uma longa carta de Ranulfo a Mundo. A motivação das cartas é uma possibilidade de uma ligação entre Ranulfo e Mundo, já que ocorre um caso extra-conjugal entre Ran e a mãe de Mundo, Alícia. Deixando assim, dúvidas sobre a paternidade de Mundo. No entanto havia laços entre Alícia e Ranulfo, Jano e Ranulfo, Alícia e Arana, Ramira e Jano, e Lavo com todos
Entre estes personagens interligados, surge um metadiscurso presente no livro em relação à produção artística. A interessante discussão sobre a função da arte engajada ou comercial, experimental ou convencional, é presente na história de Mundo. Ele aspira arte revolucionária que contribua para conscientizar as massas. Entretanto não consegue, apesar dos sinceros esforços. Arana, seu Guru, contrastando, deseja parecer artístico, mas seu trabalho é meramente comercial.
Em relação ao âmbito literário, Lavo aprende com seu tio que escrever é trabalhar com a imaginação dos outros e com a sua própria, e para isso é necessário compreender cada pessoa e o que elas são capazes de imaginar e seus potenciais imaginários. Ele ao escrever o livro, reúne todas as lembranças que viveu com seu amigo com as cartas que Mundo recebia e enviava quando exilado.
O livro fecha com uma carta de escrita sofrível e mensagem angustiada, de Mundo, à beira da morte num hospital carioca, para Lavo, ainda em Manaus. Lavo é o herdeiro de seu legado; e o único que não arriscou a vida em busca de estilhaços de sonhos, o homem cuja linguagem possui o desapego necessário para narrar esse mundo desencantado. A tragédia a envolver os personagens de Cinzas do Norte é apenas mais uma a se juntar à tragédia das “reformas urbanas” a castigar a capital do Amazonas, à tragédia de um regime de perseguição e tortura, à tragédia de uma arte supostamente engajada que no final se revela uma farsa.

DAMA_MAIS_BELA



Livro: Cinzas do Norte
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2005
Número de páginas: 312

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