quinta-feira, 2 de agosto de 2007

RIO: ONTEM, HOJE, AMANHÃ


Pão De Açúcar


O grande pão de mel suspenso entre mar e céu

insinua os prazeres da cidade.

A boca, o paladar,

a trama dos sentidos

serpenteia lá embaixo. O sol nascente

e o sol cadente vestem de púrpura

a forma rígida. Nuvens ciganas

brincam de subtraí-la.

A cada hora, desintegra-se, recompõe-se,

assume formas inéditas de transparência.

Tem as cores da vida e o sigilo da sombra,

É montanha ou aparição crepuscular.


Praia


A céu aberto reúnem-se em congresso

os corpos que a manhã torna esculpidos,

ao entardecer envoltos de doçura.

Aqui pousam moradas redondezas

entregues à delícia de existir

ao calor da onda glauca, sem problemas.

Existir, simplesmente – a vida é cor

é curva adolescente, é surfe e papo.

O mar, irmão. O cão namora o peixe?

A barraca levada pelo vento?

A obrigação tediosa postergada?

Deixa fluir o tempo! O tempo é nada.


Zona Sul


A onda mais alta

no colar da praia;

a areia mais cálida

no beijo dos corpos;

morros em coroa

no verde-azul-verde.

Zona Sul, por que me tentas

a ser o átomo na luz?

Por que me levas ao instinto

de primeiro homem nascido

na concha da natureza?

Zona Sul, me perco em sol.


Outros Bairros


O Rio não é simples. (Haverá

cidade simples, de uniforme rosto?)

Seu dernier cri vizinha o primitivo.

Sua opulência casa-se ao espontâneo.

O presépio dos morros entrelaça-se

com signos de riqueza e de fulgor.

Um cão – há sempre um cão – cheira a paisagem.

Uma ave – há sempre uma ave – singra a aurora.


Gente


O trabalho e o lazer, suas linhas se cruzam

pelas ruas do Rio, em tácito concerto.

O religioso gesto de juntar pedrinhas

de calçamento é o mesmo de lançar as cartas

no cassino montado em banco de cimento.

Come fogo, este aqui, e a inveja que me causa...

(Quisera eu imitá-lo, e falta-me a ciência.)

Outro doma o carro, subjugado dragão

por seu frágil poder mecânico prostrado.

Assim o povo mostra a sua dupla face:

labutar é destino? Há que sobrar astúcia

para fazer de tudo uma espécie de sonho.


Crianças


Não há que de desesperar do homem.

Temos ainda – arca de surpresa – os meninos,

e é proibido antecipar a sorte.

Degustam bem-aventuradamente um naco de melancia,

acomodam-se na caixa de biscoitos, aderem ao carnaval.

Seus olhos profundos te indagam:

- Que fazes por mim?

Não sabemos responder – mas os meninos continuam,

esperança de todos os dias, promessa de humanidade.


Carnaval


Liberto de estatutos e limites,

o corpo encontra a sua festa.

Solto (e ritmado), não caminha,

salta,

ginga,

rodopia,

dança.

Dança em torno da História e da Legenda,

a glória de ser corpo, a súbita invenção

de uma ou outra ordem, onírica e terrestre.

Sobre as cabeças paira o antigo deus da música,

do vinho e da euforia,

no golpe eternizante do minuto.


Futebol


Futebol se joga no estádio?

Futebol se joga na praia,

futebol se joga na rua,

futebol se joga na alma.

A bola é a mesma: forma sacra

para craques e pernas-de-pau.

Mesma a volúpia de chutar

na delirante copa-mundo

ou no árido espaço do morro.

São vôos de estátuas súbitas,

Desenhos feéricos, bailados

de pés e troncos entrançados.

Instantes lúdicos: flutua

o jogador, gravado no ar

- afinal, o corpo triunfante

da triste lei da gravidade.


Umbanda


Yemanjá, filha de Oxalá,

Mãe de Xangô e de todos os orixás,

saravá!

Neste barquinho carregado de braceletes e colares,

entre flores e luzes,

vai o nosso rogo: protegei

o bom povo do Rio de Janeiro.

Dai-lhe confiança, fortaleza e paz.

Que as falanges de vossa linha

desmanchem os negros trabalhos negativos,

adversos à cidade e à sua gente

e façam a alegria reinar

à beira dessas ondas dedicadas

a vosso poder e encanto

Yemanjá, branco-azul-prateada

sereia rainha do mar!


Flora e Fauna


Insiste o pássaro no ramo

em proclamar o seu direito

à vida livre e ao verde pouso.

Insiste a flor em colorir-se

com as tintas todas matinais,

à revelia do alumínio

e do fumé e do ray-ban.

Troncos vetustos e plumagens

rubras, imperiais palmeiras

- a natureza se requinta

em ofertar a olhos cansados

a perene renovação

da vida acima das catástrofes.


Por Aí Além


Deixa um momento o asfalto, vem comigo,

entre jogos de sombra e claridade

conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio

destes montes e montes sucessivos

que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal

da mata exuberante, onde as lianas

e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro

diante da igrejinha, vai sentindo

o que é doçura e paz na hora fluindo.


Rio: Ontem, Hoje, Amanhã


Sumiram, no pélago da História,

os índios,

os franceses invasores,

os capitães-mores, os engenhos de açúcar,

os amores de Domitila e Capitu.

Ficou – ficará sempre –

a magia do Rio de Janeiro.

Violentada embora (que importa?),

perdura, renitente,

a caprichosa geometria carioca.

Desdobra-se a paisagem

diferente de todas as paisagens,

com a água e a terra em conjunção sensual.

E permanece a embriagadora essência

da palavra RIO

- tudo que no Rio é flama implícita.

Amanhã virão outros moradores

sensíveis à escultura da cidade

e à sua voluptuosa formação,

e um amor mais lúcido e operante

que o nosso pobre amor desordenado

defenderá o sortilégio do Rio,

a perenidade atlântica do Rio,

a graça de viver e amar o Rio.


Deus, Brasileiro?


Somos pecadores, porém Cristo

perdoa, lá do alto da montanha,

a escuridão de nossos pecados.

Somos pecadores, mas prostamo-nos

ante a infinita benevolência

de Deus, nosso criador e responsável.

E quando o sol de ouro irrompe

na ressurreição do dia e da carne,

sentimo-nos puros, pecadores,

privilegiados por Deus, que é brasileiro

ou talvez carioca.


Carlos Drummond de Andrade

Um comentário:

Paulo Góes disse...

Sempre adorei música e poesias,assim como as coisa da natureza.Pois,fazer poesia é fazer elogios à natureza