"Se você não tivesse uma perna eu continuaria te amando, me dizia ela. Se você fosse corcunda eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse surdo-mudo eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse vesga eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse barrigudo e feio eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse toda marcada de varíola eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse velho e impotente eu continuaria te amando, ela dizia. E nós estávamos trocando essas juras quando uma vontade de ser verdadeiro bateu em mim, funda como uma punhalada, e eu perguntei a ela, e se eu não tivesse dentes, você me amaria?, e ela respondeu, se você não tivesse dentes eu continuaria te amando. Então eu tirei minha dentadura e botei em cima da cama, num gesto grave, religioso e metafísico. Ficamos os dois olhando para a dentadura em cima do lençol, até que Maria se levantou, colocou um vestido, e disse, vou comprar cigarros. Até hoje não voltou. Nathanael, me explica o que foi que aconteceu. O amor acaba de repente? Alguns dentes, míseros pedacinhos de marfim, valem tanto assim? odontos Silva."
[Trecho de "Corações Solitários", em Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca]
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