"Ninguém se assuste se eu virar assassina. Eu já sou assassina, eu desejo a morte de tudo que obriga um menino a escrever: estou desesperado. O que é que eu faço, em que língua vou fazer um comício, uma passeata que irrompa nos gabinetes, nas salas dos professores que tomam cafezinho e arrotam sua incomensurável boçalidade sobre o susto de meninos desarmados? Fazem política, os desgraçados, brigam horas e horas pela aula a mais, o tostão a mais, o enquadramento, o quinquênio, o milênio de arrogância, frustração e azedume.
"Deus te abençoe, filhinho, vai pra escola, seja educado e respeitador, honra teu mestre." Mestre? Onde é que tem um mestre no Brasil pra que eu lhe beije as mãos?Já não basta ser gente pra encanecer de dor? Ainda têm as escolas que se aplicar neste esmero de esvaziar dos meninos seu desejo de bois, grama e pequenos córregos?Ó ofício demoníaco de encher de areia e confusão o que ainda é puro e tenro cálice.
Não quero dar aulas, ó meu Deus, me livra desta aflição, me deixa dormir, me deixa em paz, aula de nada, aula de religião eu não quero dar. Falo e me aflijo porque sei que não tem outro caminho senão começar de baixo, de trás, do fim da história, quando Deus pega Adão e lhe mostra as coisas, lhe deixa dar nome às coisas, lhe deixa, deixa, ruminando seu espanto, sua alegria, sua primeira palavra...
Ó senhor presidente, ó senhor ministro, escuta: o menino foi à aula e escreveu à sua mãe: estou desesperado. Escuta quem tenha ouvidos: os meninos do Brasil fenecem entre retórica, montanhas de papel e medo.
Entre ladrões, como Cristo na cruz.
Adélia Prado - do livro "Solte os cachorros"
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