sábado, 6 de outubro de 2007

Literatura - A Paixão Segundo GH

"Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi - porque não entendo. Sei que vi - porque para nada serve o que vi. Escuta, vou ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária. Desculpa eu te dar isto, eu bem queria ter visto coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil".
“Perder-se é um achar-se perigoso”.
“Juro que é assim o amor. Eu sei, só porque estive sentada ali e estava sabendo. Somente à luz da barata, é que sei que tudo o que nós dois tivemos antes já era amor. Foi preciso a barata me doer tanto como se me arrancassem as unhas – e então não suportei mais a tortura e confessei, e estou delatando. Não suportei mais e estou confessando que já sabia de uma verdade que nunca teve utilidade e aplicação, e que eu teria medo de aplicar, pois não sou adulta bastante para saber usar uma verdade sem me destruir”.
“Eu sou mansa mas minha função de viver é feroz. Ah, o amor pré-humano me invade. Eu entendo, eu entendo! A forma de viver é um segredo tão secreto que é o rastejamento silencioso de um segredo. É um segredo no deserto. E eu certamente já sabia. Pois, à luz do amor de duas baratas me veio a lembrança de um amor verdadeiro que eu tivera uma vez e que não sabia que tivera – pois amor era então o que eu entendesse de uma palavra. Mas há alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita”.
“Vou te dizer o que eu nunca te disse antes, talvez seja isso o que está faltando: ter dito. Se eu não disse, não foi por avareza de dizer, nem por minha mudez de barata que tem mais olhos do que boca. Se eu não disse é porque não sabia que sabia – mas agora sei. Vou te dizer que eu te amo. Sei que te disse isso antes, e que também era verdade quando te disse, mas é que só agora estou realmente dizendo. Estou precisando dizer antes que eu... oh, mas é a barata que vai morrer, não eu! Não preciso desta carta de condenado numa cela... não, não quero te dar o susto do meu amor. Se te assustares comigo, eu me assustarei comigo”.
“Queres te lembrar comigo? Oh, sei que é difícil: mas vamos para nós. Em vez de superar-nos. Não tenhas medo agora, estás a salvo porque pelo menos já aconteceu, a menos que vejas perigo em saber que aconteceu”.
“E tudo isso – oh, horror meu – tudo isso se passava no largo seio da indiferença... Tudo isso se perdendo a si mesmo num destino em espiral, e este não se perde a si mesmo. Nesse destino infinito, feito só de cruel atualidade”.
"E é inútil não ir. No escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo que durmo mas no silêncio o ginete respira. Não diz nada mas respira, espera e respira. Todos os dias será a mesma coisa: já ao entardecer começo a ficar melancólica e pensativa".
“O que ainda me assustava era que até mesmo o horror impunível ia ser generosamente reabsorvido pelo abismo do tempo interminável, pelo abismo das alturas intermináveis, pelo profundo abismo do Deus: absorvido pelo seio de uma indiferença. Tão diversa da indiferença humana. Pois aquela era uma indiferença-interessada, uma indiferença que se cumpre. Era uma indiferença extremamente enérgica. E tudo em silêncio, naquele meu inferno. Pois os risos fazem parte do volume do silêncio, só no olho faiscava o prazer-indiferente, mas o riso era no próprio sangue e não se ouve. E tudo isto é neste próprio instante, é no já”.
"Aquilo que eu fizer do pedido e da carência - esta será a vida que terei feito de minha vida. Não se colocar em face da esperança não é a destruição do pedido! E não é abster-se da carência. Ah, é aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência".
"Precisava de alguém que não fosse tão mesquinho como eu, alguém que fosse tão mais largo do que eu a ponto de admitir a minha desgraça sem usar sequer a piedade e o consolo - alguém que fosse, que fosse! E não, como eu, uma acusadora da natureza, não como eu, uma espantada pela força de meus próprios ódios e amores".
"Não quero o amor bonito. Não quero a meia luz, não quero a cara bem-feita, não quero o expressivo. Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pesoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais. Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem, e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita".
"Através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza".
"Eu poderia não entender e tu poderias não entender que prescindir da esperança - na verdade significa ação, e hoje. Não, não é destruidor, espera, deixa eu nos entender. Trata-se de assunto proibido não porque é ruim mas porque nós nos arriscamos. (...) Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma coisa na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar".
"Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar".
“Ah, estou sendo tão direta que chego a parecer simbólica”.

(por Clarice Lispector)

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